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A Bicicleta e a Cidade

Pra iniciar este blog republicamos o segundo artigo do professor Júlio Ambrozio sobre a questão da mobilidade urbana e a utilização da bicicleta em Petrópolis e, por que não, em outras cidades mesmo da região serrana como Teresópolis e Friburgo. Isso sem falar de tantas cidades por aí cortadas por vias fluviais pouco aproveitadas - a não ser como esgoto. E tenham uma boa leitura.
A Bicicleta e a Cidade
Júlio Ambrozio *
Exatos nove meses atrás, 22/01/2015, publiquei artigo no blog do Carvalho. Graças ao interesse e paciência, não necessariamente nesta ordem, do arquiteto e urbanista Cesare Migliari, o texto anexara também dois croquis autoexplicativos de tudo o que fora escrito. Embora apontasse no penúltimo parágrafo, de passagem, uma razão substanciosa para a recorrente paralisia em ações que poderiam melhor qualificar a existência petropolitana e citadina, o artigo, de caráter prático e propositivo ao redor de Petrópolis e a bicicleta, sustentava - e permanece defendendo - que parte necessária do problema de mobilidade urbana petropolitana, tem sua solução na construção de rede de ciclovias ao longo dos três principais vales fluviais do primeiro distrito.
A proposta do professor Júlio Ambrózio é tão simples quanto o Plano Koeller, mais valorizado pelas instituições e personalidades petropolitanaas por sua característica
A proposta do professor Júlio Ambrózio é tão simples quanto o Plano Koeller, mais valorizado pelas instituições e personalidades petropolitanas por sua característica "imperial" do que pelo (único) planejamento que a cidade já conheceu.
Recorrentemente, observo que muitos diretamente interessados na expansão da bicicleta mencionam a necessidade de educação e esclarecimento legal. Tudo se passaria como se o problema fosse absolutamente de psicologia social e de explicação jurídica, valendo simples mudança de conduta e leitura de alguns artigos do Código de Trânsito Brasileiro. A percepção de que a rua é não somente o local do automóvel, mas igualmente de outros veículos, tais como a própria bicicleta, é necessária. Mas apenas isso não basta.
Exemplo ao léu: outro dia, R. Dr. Nelson Sá Earp habitualmente engarrafada - escrevo a partir de Petrópolis, RJ -, encontrando-me vexado na sarjeta e tendo à frente um bueiro, fui obrigado a ligeiro movimento com o guião da bicicleta; movimento suficiente para, involuntariamente, deslocar o retrovisor de veículo engarrafado. Nada demais. Apenas exemplo prosaico de inúmeros problemas que o ciclismo urbano enfrenta país afora. O desdobramento do acontecido é que foi curioso, diria até divertido, pois eu mesmo recolocando o retrovisor do automóvel, ato seguinte, com paciência, observei ao motorista que “[...] se estivesse mais distante da sarjeta – quem sabe 1.50m? -, não teria atingido o retrovisor.” A reação do condutor, cuja expectativa naturalmente era minha escusa ou admissão de culpa, foi a usual: redarguiu indignado que o automóvel estava engarrafado e, então, era inadmissível ser o culpado, já que fora eu que forçara a passagem. Precisamente, foi habitual a resposta porque ela ecoava a psicologia social do “rodoviarismo”, valendo dizer que, para este motorista e a quase totalidade absoluta de condutores de automóveis, caminhões, ônibus, e mesmo de motocicletas, o motor a explosão tem absoluta prioridade e precedência citadina e estradeira, ainda que, ao contrário, o corpo de artigos do CTB dê importância à vida e não ao fluxo de veículos. A lição a se retirar é que essa automotiva psicologia social guarda razões mais profundas. Os desígnios legais do Código de Trânsito Brasileiro, protetores nominais da vida entorno da viação, não são suficientes para alterar certa espécie de estado mental, nascido com “rodoviarismo” norte-americano e, já que o exemplo deste parágrafo é petropolitano e brasileiro, fortemente importado ou abduzido pelo Governo Juscelino Kubitschek.
Trata-se agora de tecer algumas considerações mais alargadas sobre o fato difícil e brasileiro em se assumir, pelas administrações municipais, uma posição desassombrada em favor do ciclismo.
Escrevi fato brasileiro e custoso. Contudo, rigorosamente, o caso não é somente brasileiro; afinal, todos os países absorveram a trama rodoviária. Se como meio de transporte, no Brasil, apenas 3,22% e 8,45% de pessoas fazem uso de bicicleta nas capitais e em outras cidades, em países como os EUA e Inglaterra, a despeito de persistir neste último a oficina de selins e acessórios Brooks, o número percentual é bem menor - somente 1% de suas respectivas populações viaja de bicicleta.
O croqui do arquiteto e urbanista Cesare Migliari mostra como as ciclovias podem ser construídas em uma das marges dos rios, sem interferir nas atuais calçadas e sem tirar espaço dos veículos motorizados - como ocorre hoje perigosamente na avenida Barão do Rio Branco, nas duas pistas.
O croqui do arquiteto e urbanista Cesare Migliari mostra como as ciclovias podem ser construídas em uma das marges dos rios, sem interferir nas atuais calçadas e sem tirar espaço dos veículos motorizados - como ocorre hoje perigosamente na avenida Barão do Rio Branco, nas duas pistas.
Além disso, muitos erroneamente imaginam longa existência ciclística em países como Alemanha, Holanda, Dinamarca ou mesmo Noruega, territórios hoje com altas taxas de ciclismo. O fato é que, na era de ouro do Capitalismo, nesses países o ciclismo quase desaparecera diante da expansão da malha viária automobilística; os índices de pedaladas entre 1950 e 1975, por exemplo, desabaram nos três primeiros. Foi a crise da década de 1970 que fez com que esses três países anteriores começassem a criar obstáculos ao transporte urbano individual vinculado ao automóvel, apontando para uma cidade mais amigável e direcionada aos seus moradores. A bicicleta, então, ressurgiu com força nesses territórios; afinal de contas, a relação entre bicicleta e pedestre, conquanto acidentes aconteçam, sempre foi bem mais cordial - os dois, homens a pé e de bicicleta, absolutamente frágeis ante os motores de combustão interna.
Na Holanda, a bicicleta que tinha sido urbanisticamente emparedada pelo regime fordista de pós-guerra – embora alguma presença ciclística houvesse antes da Segunda Guerra -, a crise de 1970 e a pressão popular determinaram prioridades para o ciclismo: ciclovias, faixas delimitadoras em ruas de pedestre, ruas para bicicletas em inúmeras vias urbanas de pouca largura - ainda que automóveis, com velocidade até 30 km, possam circular - são alguns exemplos que, nos Países Baixos, tornaram o ciclismo urbano mais seguro e confortável. Mesmo em deambulações longas rotas estradeiras exclusivas para bicicleta surgiram, possibilitando e estimulando as viagens ciclísticas. Salvo engano, hoje, 2015, a rede de vias holandesa e alemã para a bicicleta portaria mais de 19 mil km e de 31mil km, respectivamente.
Todavia, ainda que o ciclismo por vezes se apresente como solução simpática para os problemas de mobilidade, especialmente em cidades do núcleo do capitalismo, por que somente a pressão do pedestre e o subsequente esforço planeado de muitos anos, ou a eventual determinação de um ou outro alcaide mundo afora, transformam em realidade o potencial cooperativo da bicicleta em favor de cidades mais amistosas e menos atravancadas?
A topografia, ausência de ruído, a poluição atmosférica, clima, o custo barato de seu deslocamento em relação aos carros, vigor físico, são exemplos de fatores que justificariam a distinção urbana da bicicleta. Por que motivo, então, ela permanece como patinho feio na paisagem citadina e estradeira? Veículo de pobres e de eventuais adolescentes, quando muito a bicicleta – no Brasil, por exemplo - tem prestígio apenas como aparelho de ginástica, como esporte cardiovascular e antidiabetes, circunscrito ao fim de semana, ou restrito as disputas esportivas fixadas em áreas que, na imensa maioria das vezes, não afetam a dominância automotiva.
Qual afinal o motivo, a partir do fim da segunda-guerra, de cidades se transformarem em extensas redes rodoviárias? Los Angeles seria ótimo exemplo; mas também São Paulo, Rio de Janeiro, metrópoles regionais e, contrassenso urbano, cidades médias brasileiras. Qual a causa justificadora de parqueamentos rueiros e privados? Quais as razões de malha rodoviária e estacionamentos existindo em detrimento de pedestres, praças e bicicletas?
Repare que o regime fordista - oriundo dos anos 1920, mas cristalizado após 1945 -, aumentando a produtividade articulada ao salário, propiciou maior partilha de riqueza, cuja consequência, dentre inúmeras, proporcionou sistemática aquisição de bens de consumo mais caros, como automóveis e residências financiados. Repare também que o automóvel, na sociedade norteamericana, foi um dos fatores para a solução da crise de 1930. Outros fatores, aliás, foram a própria segunda guerra e a consolidação posterior do complexo industrial-militar, além de extensa suburbanização viabilizada com a valorização e estimulo complementar deste próprio automóvel. O fato é que, de um lado, a fabricação de veículos a explosão irrigava a economia com extraordinárias demandas por insumos necessários a sua montagem; de outro, veículo finalizado, cumpria a urbana função aceleradora de rotação do capital, já que imprimira maior velocidade de circulação no interior das cidades.
A presença hegemônica dos Estados Unidos na geoeconomia política mundial foi elemento fundamental para o “rodoviarismo” se espalhar em todo o mundo no pós-guerra. O automóvel, então, passou mais e mais a fazer parte da paisagem urbana e territorial. Desnecessários exemplos. Basta mencionar novamente Juscelino Kubitschek.
Na ilustração, Cesare Migliari evidencia a integração da proposta do professor Júlio Ambrozio com o bucólico ambiente petropolitano.
Na ilustração, Cesare Migliari evidencia a integração da proposta do professor Júlio Ambrozio com o bucólico ambiente petropolitano.
O problema, no ponto em que estamos, é que o automóvel, outrora fator de fluidez no ambiente natural ou privilegiado do capital – a cidade -, hoje contribui precariamente para a necessária fluência do espaço urbano, colaborando, ao contrário, cada vez mais com a insolvabilidade no giro do capital. Ou seja, se pelo viés produtivo o motor de combustão interna ainda exerce papel importante na estrutura reprodutiva do capitalismo, pelo viés espacial e urbano, entretanto, coopera absolutamente para a insolvência da circulação, gerando, então, enguiços ou obstáculos para essa mesma estrutura reprodutiva; tudo isso sem mencionar o auxílio considerável desse veiculo na concentração de dióxido de carbono na atmosfera.
A despeito de a psicologia social automotiva ecoar os interesses do primeiro viés da contradição apontada no parágrafo anterior, aqui e ali cidades do mundo tem procurado solucionar esta imobilidade tendencial da circulação urbana, indicando a bicicleta como um fator importante na resolução desta já crônica imobilidade urbana, que, não é demais insistir, faz parte da propriíssima paralisia do capital, sobretudo após 2008.
Como parêntesis, dado que escrevo a partir de Petrópolis, é de se perguntar até quando a cidade média petropolitana, há décadas imobilizada pela circulação, valendo decênios de crise econômica e urbana, aguardará um desfecho estrutural, dir-se-ia – do meio de algumas soluções – uma resposta ciclística ao seu crônico problema?
Patinho desprestigiado na história da deambulação urbana pós Revolução Industrial, a bicicleta vai alcançando presença mais prestigiosa na paisagem citadina, cujo exemplo assaz afetado é o Movimento Cycle chic, oriundo de Copenhagen, que a partir de 2008 faz presença cotidiana em variadas metrópoles, inclusive as do Brasil. Outros exemplos não faltam: aluguel de bicicletas, ciclovias instaladas em vastas áreas urbanas, fechamento de zonas centrais aos automóveis e permitida para bicicletas. Nova Iorque, Paris, Berlim, Barcelona, Dublin, São Paulo e muitas outras metrópoles, com mais ou menos atritos com a onipresença automotiva e sua correspondente psicologia social, incorporam o ciclismo ao deslocamento necessário e cotidiano de seus habitantes, uma vez que a ciclovia e demais estruturas ciclísticas chegam primeiro que o ciclista.
Se bem que encerrada por esses processos mais abstratos e mais complexos ligados à economia política urbana, a bicicleta, urbanisticamente superior ao automóvel, propicia mais proximidade e até mesmo maior solidariedade com os problemas comezinhos e cotidianos de uma cidade.
Além disso, a simples travessia citadina, que bem pode se estender - como viagem ciclística - por paisagens mais alargadas, desafiando o equilíbrio e enfrentando os ventos, reconquistaria uma das feições genuínas do humano submetida pela mercadoria - o épico, que dava ao homem a fortuna de pôr-se à prova diante do mundo.
A bicicleta, por fim, porta prazeres irredutíveis e jamais ameaçados pelo automóvel. Não é a esmo que, pedalando, muitos carreguem algum sorriso no rosto. Fazendo bem a saúde física, ela igualmente propicia certa sobrançaria – afinal, criança ou velho, quem pedala alcança determinada altivez ao tomar ciência de seu equilíbrio e força.
(*) Júlio Ambrozio é Professor do Departamento de Geociências da UFJF

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